quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Apoio Educativo de Língua Portuguesa

Periodicamente iremos dando notícias do trabalho que está a ser desenvolvido no Apoio Educativo de Língua Portuguesa.

Aqui fica a primeira actividade...

TAREFA: Após a leitura deste texto, imagina um desfecho diferente para a história a partir da zona que está a cinzento.



OS SAPATOS DA IRMÃ



Deve estar a fazer-se muito tarde. Fernando tenta equilibrar-se nos sapatos, tropeça, aperta a pasta de encontro ao peito. A primeira grande dificuldade está vencida: saiu o portão sem ser visto por ninguém. Desce a calçada sem levantar os olhos. Não ver, ao menos, se o vêem. Mas no fim da calçada, aparece Angelina, que foi ao pão e ao vinho. Que irá ela pensar? Se Angelina o ajudasse, se pudesse protegê-lo! Mas a garota dá com os olhos nele e desata a rir como uma louca.
- Que reinadio que o menino vai… parece uma coruja!
- Angelina – diz Fernando com as lágrimas nos olhos ― não faças pouco…
- Foi de castigo?
- Foi, não faças pouco…
- E o menino vai assim para o liceu? ― perguntou ela, sem conseguir conter o riso.
- Vou. E tu… vai para o diabo.
E põe-se a andar, tão depressa quanto pode. Desequilibra-se, pára, endireita o sapato, recomeça. Não se volta. Não lhe interessa nada, inteiramente nada, o que Angelina pense. O que lhe interessa é desaparecer depressa daquela rua, evitar as pessoas conhecidas, passar despercebido. E, ao atravessar uma ruazinha estreita, mais ou menos solitária, que conduz ao largo do liceu, sente uns dedos no braço.
- Bom dia, pá.
É o Gabriel, seu companheiro de carteira. Que irá acontecer? Mas Gabriel dá-lhe o braço e fala com amizade:
- Foi castigo do teu pai, pá?
Fernando faz que sim com a cabeça.
- Não há direito, pá, é indecente.
Caminham, lado a lado, silenciosos. Ao chegarem ao largo do liceu, Fernando pára, agarrado ao braço do outro.
- Anda, pá, não te rales.
- Eles vão fazer troça, Gabriel.
Está lívido. É o momento mais infeliz da sua vida. Antes o pai tivesse continuado a bater-lhe. Antes lhe tivesse dado até matá-lo. Tudo era preferível a aparecer no liceu com sapatos de mulher.
Mas Bitá, aquele malvado do Bitá, já os viu. Sai do grupo em que estava, aproxima-se com o desembaraço do costume. Pára a alguns metros a olhar. Depois é o Carlos do terceiro ano que o vê. Depois o António. Depois o Raul. E, a pouco e pouco, todos e viram para o Fernando, descobrem com espanto os velhos sapatos de Amélia e ficam-se a olhá-lo, silenciosos. Será possível? Será possível que eles compreendam tudo e não se metam comigo?
Mas é um momento só. Os olhos dos rapazes cruzam-se uns com os outros, indecisos, ainda. Que história é aquela? Cotoveladas. Alguém diz: “Que giro que o puto vem.” E começam. Um riso manso, primeiro. Depois o riso sobe, alastra, levando tudo à sua frente. É já uma surriada monstruosa à porta do liceu. Gabriel quer fazê-los parar, levanta os braços. Mas ninguém lhe dá atenção, ninguém o vê, ele próprio sorri contra vontade e acaba por rir, às gargalhadas, do ar grotesco do companheiro de carteira.
Fernando queria fugir, desaparecer dali, voar. Onde estaria Gabriel? Procura-o desesperadamente com os olhos. Gabriel. Gabriel. E, num relance, vê-o no meio dos outros, a rir também, a rir tanto como eles.

Mário Diosísio,
O Dia Cinzento e Outros Contos, (texto com supressões), Europa-América

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